sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Ortodoxia e Narcisismo

Ricardo Barbosa de Souza

Talvez em virtude de nossa formação racional leiamos as cartas de Paulo como tratados sistemáticos de teologia. O tema principal da carta aos Romanos é a “justificação pela fé”. O da carta aos Gálatas e a “graça de Deus”, e por aí vai. No entanto, sou muitas vezes levado a reconhecer que, embora os tratados teológicos sejam fundamentais em suas cartas, Paulo está profundamente preocupado com um outro assunto: a formação do povo de Deus. Este é o grande tema das cartas de Paulo.
Como que judeus com sua longa tradição religiosa e romanos com sua bagagem pagã e sincrética, iriam se encontrar, na grande capital do Império Romano, e ter uma identidade comum como povo de Deus? Como que numa cidade como Corinto, com sua população híbrida formada de ex-soldados romanos, escravos, escravos livres, gregos, judeus, comerciantes, marinheiros, prostitutas cultuais, todos com suas tradições, moral, hábitos, que agora se encontram num mesmo lugar para cultuar o mesmo Deus e afirmar que Jesus Cristo é seu Senhor?  A formação da identidade cristã sempre foi uma grande preocupação dos autores do Novo Testamento.
A argumentação teológica de Paulo é a forma como ele estabelece os alicerces desta nova identidade. Sua intenção é a formação da identidade do povo da nova aliança. Para os cristãos de Roma ele diz: “não vos conformeis com este século…”. Para os de Éfeso: “não andem como andam os gentios…”. Para os de Colossos: “dispam-se do velho homem…”. O povo de Deus é o povo da nova aliança, a nova humanidade inaugurada em Cristo, a nova criação. Este povo é chamado para um novo modo de ser, um novo jeito de viver. A teologia e a doutrina dão o fundamento para isto.
Por outro lado, a igreja encontra-se constantemente sob o olhar e o juízo do mundo. Paulo afirma que ela é o corpo de Cristo, a representação visível do Senhor não visível. Suas obras e palavras devem refletir e revelar ao mundo algo do caráter e da natureza divina, algo do amor e santidade. É por esta razão que Paulo se preocupa com o comportamento dos cristãos. O conhecimento de Deus era, muitas vezes, negado pelo comportamento dos cristãos. A forma como viviam negava aquilo que criam e afirmavam sobre Deus. A fórmula de Tiago era muito simples: A fé sem as obras decorrentes dela é morta. Não se demonstra a fé sem um comportamento adequado a ela. O apelo que Paulo faz aos crentes de Creta é para que “embelezem a doutrina de Deus com um comportamento apropriado (Tt 2.10).
Jesus afirma que o mundo nos reconhecerá como seus discípulos pelo amor que demonstramos para com o próximo (Jo 13.34,35). Afirma também, em sua oração de despedida, que o mundo haveria de crer que ele é o Salvador pela comunhão e unidade que os discípulos dele haveriam de demonstrar (Jo 17.21). Jesus oferece ao mundo o direito de julgar a identidade do seu povo pela forma como amam e respondem à missão do Filho.
O chamado de Deus envolve a doutrina e o comportamento ou, nas palavras de Francis Schaeffer, a ortodoxia da doutrina e a ortodoxia da comunidade. Só podemos compreender a importância e a influência da igreja nos primeiros séculos por estas duas realidades combinadas.
As igrejas sempre enfrentaram dificuldades, ora com a doutrina, ora com o comportamento. Na maioria das vezes, com ambos. Líderes gananciosos e enganadores, cristãos insolentes e desobedientes comprometem a integridade e a identidade da igreja de Cristo. Ser povo de Deus, reconhecer que temos um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai, que fazemos parte de um mesmo corpo onde, embora sendo distintos, formamos uma só realidade, nunca foi tarefa fácil.
Exatamente por ser uma tarefa difícil é que Paulo exorta os cristãos a serem diligentes e a se esforçarem para preservar sua identidade comum. É uma tarefa que requer humildade, mansidão, compaixão, submissão, e muitas outras virtudes que são rejeitadas pela cultura moderna. No passado, um grande obstáculo à unidade da igreja eram as barreiras denominais e institucionais. Hoje, as muralhas que foram construídas ao redor das denominações vem sendo ruídas, mas enfrentamos uma outra muralha, talvez ainda maior. Nós mesmos.

O narcisismo é a marca do século. Se o século 19 foi marcado pela cultura racional, o século 20 foi o século da cultura terapêutica. Uma cultura que, ao intensificar o individualismo, legitimou uma forma de “divinização do self”. A saúde mental e o bem-estar tornaram-se substitutos para a salvação. O que o ser humano busca hoje não é a salvação através do arrependimento e fé, mas o sentir-se bem e confortável. A cultura terapêutica introduziu um modelo de relacionamento que rejeita qualquer forma de julgamento, fazendo com que o indivíduo crie sua própria realidade.
Não existem limites para o “ego” narcisista, carente e faminto. A consciência de dever para com o outro foi substituída pelo “dever que tenho para comigo”. A busca pela autorrealização, autossatisfação, autossuficiência, descrevem o frágil reconhecimento do outro. Tudo isto nos leva a viver a partir daquilo que é aparente. Nós nos preocupamos mais com o exterior e não com o interior. Esta preocupação nos leva a fugir de nossa realidade pessoal mais profunda, das frustrações decorrentes de relacionamentos superficiais e frágeis, vivendo numa agitação constante, agenda cheia, negando a realidade interior e pessoal.
Os desdobramentos deste espírito narcisista e secularizado é grande e profundo para a igreja de Jesus Cristo. Os líderes cristãos estão cada vez mais ocupados com suas agendas e projetos pessoais na busca frenética de autoafirmação. Seus relacionamentos não são nem pessoais, nem profundos, o que os leva a cultivarem uma forma de “irrealismo ministerial”. Acham que estão “conectados” por participarem de redes sociais, mas a família encontra-se fragmentada e adoecida. Fazem comentários, declarações, que não tem nenhuma relação com a forma que vivem. É justamente aqui que muitos líderes caem porque vivem a partir de uma fantasia e não da realidade.
A afirmação de João Batista em relação a Cristo é invertida pelo espírito narcisista. Ao invés de dizer: “convém que ele cresça e que eu diminua”, passamos a dizer: “convém que ele diminua para que eu cresça”. Os modelos de ministério e de espiritualidade têm por objetivo aumentar o senso de autoimportância, e não o contrário. Queremos ser nosso próprio “messias”. Frutos do Espírito como humildade, mansidão, bondade, não são buscados, muito menos desejados. A necessidade de autoafirmação é tão intensa que preferimos ser cercados de bajuladores do que de irmãos e irmãs que nos ajudam a viver de forma mais verdadeira diante de Deus.
O maior obstáculo para a igreja de Jesus Cristo viver em unidade como povo de Deus somos nós mesmos. Nos critérios diagnósticos para o Transtorno da Personalidade Narcisista encontramos algumas características que refletem bem o perfil da liderança cristã. Segundo a Dra. Elaine Marini (com base no Manual de Diagnósticos de Transtornos nº 4), este transtorno descreve “Um padrão invasivo de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e falta de empatia, que começa no início da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos, indicado por pelo menos cinco dos seguintes critérios:
(1) sentimento grandioso da própria importância (por exemplo, exagera realizações e talentos, espera ser reconhecido como superior sem realizações comensuráveis);
(2) preocupação com fantasias de ilimitado sucesso, poder, inteligência, beleza ou amor ideal;
(3) crença de ser "especial" e único e de que somente pode ser compreendido ou deve associar-se a outras pessoas (ou instituições) especiais ou de condição elevada;
(4) exigência de admiração excessiva;
(5) sentimento de intitulação, ou seja, possui expectativas irracionais de receber um tratamento especialmente favorável ou obediência automática às suas expectativas;
(6) é explorador em relacionamentos interpessoais, isto é, tira vantagem de outros para atingir seus próprios objetivos;
(7) ausência de empatia: reluta em reconhecer ou identificar-se com os sentimentos e necessidades alheias;
(8) frequentemente sente inveja de outras pessoas ou acredita ser alvo da inveja alheia;
(9) comportamentos e atitudes arrogantes e insolentes.
O curioso é que no próximo Manual de Diagnósticos de Transtornos (nº 5) que será publicado em 2012, o Transtorno de Personalidade Narcisista será retirado. Deixará de ser uma patologia. Imagino que para estes “cientistas”, quando uma patologia torna-se um padrão de comportamento, deixa de ser patologia e passa a ser um comportamento normal. Por este critério, muitos líderes cristãos deveriam estar numa clínica, e não num púlpito.  
É este espírito, ao meu ver, o maior inimigo à identidade comum que precisamos ter como povo de Deus. Existem duas afirmações de Paulo em sua carta a Tito que descrevem posturas distintas em relação aos líderes cristãos e a formação do povo de Deus:
1. “No tocante a Deus, professam conhecê-lo; entretanto, o negam por suas obras; é por isso que são abomináveis, desobedientes e reprovados para toda boa obra” (1.16) – A negação do conhecimento de Deus vem pela ausência da prática das boas obras. A fé sem obras é morta. Conhecimento de Deus sem a ética e a espiritualidade adequada a este conhecimento é vazio. Estes líderes falam muito, agitam-se muito, mas permanecem vazios e negam a doutrina de Cristo e dividem o povo de Deus. São líderes narcisistas. Pensam mais em si do que no “corpo de Cristo”.
2. “Não furtem; pelo contrário, deem prova de toda a fidelidade, a fim de ornarem, em todas as coisas, a doutrina de Deus, nosso Salvador” (2.10). O apelo de Paulo é para que os líderes cristãos embelezem a verdade do evangelho com a prática das boas obras e da vivência real do “fruto do Espírito”. Adornamos a doutrina de Deus na medida em que o mundo, ao ver a forma como amamos e servimos e a unidade do povo de Deus, reconhecerá a verdade acerca de Jesus Cristo.
É isto que o historiador Eusébio de Cesareia (265-339) afirma ao descrever o comportamento dos cristãos em meio a uma terrível peste. “Eles eram, efetivamente, os únicos que nesta circunstância calamitosa demonstravam com suas próprias obras, compaixão e o amor aos homens. Uns perseveravam todo dia no cuidado e no enterro dos mortos (pois eram milhares os que não tinham quem se ocupasse deles) e outros, reunindo num mesmo lugar a multidão dos que em toda a cidade estavam esgotados pela fome, repartiam pão para todos, de forma que o fato correu de boca em boca, e todos os homens glorificavam o Deus dos cristãos, e convencidos pelas próprias obras, confessavam que estes eram os únicos verdadeiramente piedosos e temerosos a Deus”.

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