domingo, 14 de agosto de 2011

Tributo a Deus

† Péricles Pereira Couto – 23/09/1946 – 07/08/2011

(Rm 14:8) Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos;
Se morremos, para o Senhor morremos.
Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor.

Por Estêvão Ferreira Couto

Em Belo Horizonte, em 9 de agosto de 2011.

Não consegui dormir muito na noite de 7 para 8 de agosto. Assim, exatamente às 03:17 horas da madrugada do dia 08, comecei a trabalhar com o que eu estava sentindo escrevendo, uma das milhares de coisas que aprendi com meu pai.

As minhas notas deram origem a parte do que falei na tarde do dia 8 de agosto, no culto em agradecimento a Deus pela vida de meu pai, e são a base do que escrevo agora. É um depoimento muito pessoal. Se você está buscando um “perfil” estruturado sobre quem foi Péricles Couto, pode parar de ler por aqui.
Agradeço mais uma vez, em meu nome e no nome de minha mãe e de minha irmã, todas as mensagens, telefonemas e demais comunicações de carinho e solidariedade que estamos recebendo da cidade, do Brasil e do mundo desde as 17:42 horas do dia 07/08.

Na certidão de óbito consta que meu pai faleceu às 17:40 horas do dia 07/08. Nesse momento, eu estava na porta do CTI e havia acabado de receber a notícia e conversar com o médico. Meu celular tocou às 17:42 horas com a seguinte mensagem de um casal de amigos que mora em Buenos Aires, Argentina:

Olá Estêvão. Marcela e eu estamos acompanhando vocês em oração. Eric.

Respondi com o post:

Meu pai acabou de entrar na presença do Pai. Louvado seja o nome do Senhor!

Eles me retornaram:

Deus esteja com você, Estêvão, sua irmã e sua mãe. Por meio do Péricles muita gente foi abençoada ao longo de toda a vida dele. Conte com Marcela e comigo. Um grande abraço, Eric.

Desculpo-me com os amigos e amigas que mandaram outras mensagens. Ainda não consegui responder.

Volto no tempo. No último dia 29 de junho, mais ou menos na mesma época em que meu pai recebeu a notícia de que precisaria passar por uma cirurgia, estive em um funeral de um bebê recém-nascido de um casal de amigos (Arthur e Quésia) que me impactou muito por causa do exemplo de fé em Deus, uma fé como a que Jó teve, que não dependia das circunstâncias. Na ocasião, pensei:

Quero ter uma fé como essa.

Persisto de forma negligente em muitos erros e pecados recorrentes. Preciso viver a minha vida aqui nesta terra de outra forma, cada dia mais condizente com a transformação que Deus já fez na minha vida.

Sabia que certamente guardaria na memória aquele momento por toda a minha vida, mas não podia imaginar que Deus já estava me preparando para estes dias...

(Tg 4:13-17) Atendei agora, vós que dizeis: Hoje, ou amanhã iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos e teremos lucros.
Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois apenas como neblina que aparece por instante e logo se dissipa.
Em vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como faremos isto ou aquilo.
Agora, entretanto, vos jactais das vossas arrogantes pretensões. Toda jactância semelhante a essa é maligna.
Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, nisso está pecando.
 
A cirurgia do dia 04/08 durou quatro horas. Minha mãe, uma tia e uma prima conversaram com ele logo que saiu da sala de cirurgia. Estava ansioso, mas aparentemente bem. O médico avisou que ele precisaria ser entubado e sedado. Na noite daquele dia eu iria visitá-lo, mas não conseguiria mais conversar com ele...
 
No dia 05/08, o primeiro momento em que o estado dele piorou, oramos junto ao seu leito (eu e minha mãe) o Salmo 23. Comuniquei a Deus que desejava que ele permanecesse mais alguns anos entre nós, mas que se tivesse de ir, que o Senhor nos desse capacidade de discernir e ver a Sua Vontade Soberana.
 
Nesse mesmo dia, minha mãe orou pedindo que ele ficasse porque tinha ainda muitos planos e projetos para realizar na obra do Senhor.
 
No dia 06/08, quando havia uma perspectiva de melhora, orei a Deus junto ao leito de meu pai, pedindo que ele confirmasse aqueles sinais positivos, mas que fosse feita a vontade Dele. Minha mãe orou e leu em voz alta algumas devocionais que meu pai tinha registrado em diário, verbis:

Devocionais Agosto 2011

01.08.2011. Segunda, 10:00.

Bendirei o Senhor em todo o tempo, o seu louvor estará sempre nos meus lábios. Engrandecei o Senhor comigo e todos à uma lhe exaltemos o nome. Clamam os justos e o Senhor os escuta e os livra de todas as suas tribulações.
Salmo 34 (1,3 e 17).

Um novo mês que inicia e estamos em Belo Horizonte hospedados pelo Israel e Nilse. Tempo de espera. Hoje, uma semana depois da cirurgia. Graças te dou ó Deus por Tua presença e encorajamento.

03.08.2011, Quarta, 20:15.

Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre. Salmo 136 (1).

Este foi o Salmo que meditei hoje pela manhã com Alva após ter feito o retorno com o médico cirurgião ontem ao final da tarde e definido a nova cirurgia para amanhã.
 
Interessante ver ao longo do salmo os diferentes motivos pelos quais dar graças ao Senhor. Vejo que o Salmista me inspira a também render graças ao Senhor pela recuperação da primeira etapa da cirurgia e agora, quando me preparo para amanhã muito cedo. A sua misericórdia dura para sempre é o refrão e isso tenho experimentado, louvado seja o Senhor!!!
 
Volto a pedir ao Senhor sua misericórdia e bondade para comigo no sentido de:
(1) me proteger durante todo o processo de cirurgia... os profissionais, os equipamentos, materiais, sala cirurgia, etc.
(2) antes, durante essa noite, tranqüilizar a minha mente, corpo, emoções e espírito, capacitando-me a descansar no Senhor.
(3) guardar a minha estrutura física para todo o processo cirúrgico e para os procedimentos de anestesia, transfusão de sangue, oxigênio e cuidados pós-cirúrgicos na UTI.
(4) guardar Alva e Nilse que estarão inicialmente me acompanhando e Alva durante a espera até que eu possa ir para o apartamento.
(5) assistência e fortalecimento para que eu suporte o tempo de hospitalização.
(6) orientar os procedimentos para minha alta e recuperação na casa do Estêvão. A maneira como conciliar a dinâmica da casa com minhas necessidades. Paciência e força para Alva aguardar este tempo.
(7) dirigir o acompanhamento médico e de enfermagem, alimentação, higiene durante o tempo no Hospital. Oro para que o Senhor me dê resistência mesmo quando estiver muito desconfortável – proteção nos procedimentos de enfermagem.
(8) agradecimento ao Israel, à Nilse por todo seu carinho e cuidado para comigo. Aos irmãos e amigos que tem acompanhado com suas orações.

Rendei graças ao Senhor porque Ele é bom!

03.08.2011. Quarta, 22:25.

Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.
Salmo 139 (16)

Pai querido, eu te louvo e agradeço por Tua bondade e misericórdia. Por tudo que venho sendo agraciado nestas semanas. Pela Tua Palavra como o texto acima. O Senhor conhece todos os meus dias e assim vou dormir esperando e ansiando por teu descanso. Guarda-me nesta noite e no amanhecer de AMANHÃ.

No dia 07/08, pela manhã, ao visitá-lo, não queria orar. O estado de sua saúde tinha piorado muito. O médico disse que a luz no fim do túnel que tinha se acendido no dia anterior, naquele dia havia se apagado. Minha mãe insistiu para que eu orasse. Balbuciei algo como: “Senhor, não confiamos em homens. Confiamos apenas no Senhor. Os homens são meros instrumentos seus.”
 
Liguei em seguida para um grande amigo, médico, intensivista, que já vinha acompanhando o caso de longe (mora em Brasília), e disse: “Carlinhos, acho que meu pai está indo...”. Ele respondeu: “Estêvão, aguarde alguns minutos que já lhe dou um retorno”.
 
Logo depois, ele retornou: “Estêvão, vou pegar um avião. Chego em Belo Horizonte às 16:10 horas”. Busquei-o no aeroporto e deixei-o na porta do hospital às 16:59 horas. Aproximadamente vinte minutos depois ele me ligou: “Estêvão, venha com sua mãe rapidamente. Ele não vai resistir.” Chegamos rapidamente no hospital, mas ele já tinha chegado na Glória. Carlinhos me disse depois que o coração dele foi diminuindo o ritmo lentamente, até que parou...

***

Minha esperança em Jesus Cristo, o Filho do Deus Vivo, não está abalada. Eu somente queria ter um pouco mais de tempo para me despedir dele. Porém, Deus sabe de todas as coisas. Se o chamou agora, e de forma tão abrupta, é porque tem algum propósito. Quem sou eu para questionar o Deus Vivo?
 
Meu pai, como qualquer ser humano, não foi perfeito. Como filho que o amava, eu conhecia muitos de seus defeitos, e também suas qualidades. Por isso, este tributo somente pode ser AO DEUS QUE EU CONHEÇO, o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Deus dos Profetas, o Deus dos Apóstolos, o Deus que se encarnou em Jesus Cristo, o Alfa e o Ômega.
 
O culto celebrado ontem foi em memória de meu pai, mas em louvor a esse Deus. Não foi uma cerimônia para ficar somente exaltando suas qualidades (como se todos os seus defeitos tivessem se desvanecido diante da morte), mas para relembrar que as qualidades que ele tinha brilhavam pela graça e pela misericórdia do Senhor na vida dele, pela atuação de Deus nele, pela disposição que ele tinha de sempre alinhar a agenda da vida dele com a agenda do Nosso Deus.
 
Meu pai cumpriu a promessa que fez a Deus muitos anos atrás, de me inculcar a Palavra do Senhor (Dt 6:7). Meu pai foi meu primeiro professor de teologia (Sim! Leigos também “fazem” teologia, como os protestantes anunciaram lá no século XVI). Ele lançou os fundamentos. Quando os fundamentos estavam consolidados, ele fazia perguntas, e quando eu pedia a resposta, ele dizia: “Se vira”. Depois, se deliciava com o que eu tinha aprendido...

(Tg 1:27) A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo.

(Salmo 1:1-2) Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes o seu prazer está na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.

Esses são dois dos inúmeros versículos e textos bíblicos que meu pai impregnou no meu coração e na minha mente.
 
Me lembro agora mesmo das várias noites, eu e minha irmã Soninha, sentados na beirada da cama de meus pais, tentando recitar o Salmo 1 completo, de cor, lutando com aquelas palavras difíceis e, finalmente, completando a tarefa. O começo era desanimador, mas a conclusão era pura felicidade.
 
Fui um privilegiado por ter Péricles Couto como meu pai. Ele não é somente meu pai de sangue. É também meu pai na fé. Converti-me ao Senhor Jesus Cristo em um carro, no trânsito. Meu pai dirigia e eu conversava com ele. De repente, eu disse: “Pai, eu quero receber Jesus no meu coração. O que devo fazer?” Meu pai encostou o carro e ali fizemos uma oração. Eu era pequeno, mas esse momento está gravado na minha mente em flashes.
 
Muitos irmãos em Cristo já me disseram isso e eu mesmo já pude testemunhar em várias oportunidades: que o dom que Deus deu ao meu pai no Corpo de Cristo era a profecia. Dizer verdades em voz alta. Colocar o dedo nas feridas. Não se calar diante da opressão e do erro, muitas vezes comprometendo a sua própria posição. Ele era assim. Às vezes ríspido demais. Mas às vezes a rispidez era necessária.
 
Deus me ensinou muitas coisas através dele (não somente através do que falava, mas principalmente através do modo como vivia): perseverança; método; organização; prestar atenção aos detalhes sem perder a visão do todo; perceber a realidade ao meu redor (não somente aquilo que é afetado pelas contingências sociais e políticas, mas também aquilo que só pode ser discernido espiritualmente – anos depois eu vim a saber, por John Stott, que isso se chamava double listening); quando cometer um erro, assumir, não esconder, e tomar imediatamente providências para corrigi-lo, fazendo tudo ao alcance para isso; jogar bola (brincávamos em um grande gramado na frente de nossa antiga casa; ele me driblava e eu me irritava por não conseguir tirar a bola dele; acompanhei incontáveis partidas dele agarrado na cerca, do lado de fora; ele realmente jogava muito bem); cuidar da minha saúde; cuidar da natureza que Deus criou (um de seus hobbies, que nos últimos tempos não praticava mais, era a jardinagem).
 
A Igreja Presbiteriana foi onde meus avós, meus pais, eu e minha irmã fomos formados e experimentamos comunhão. Portanto, apesar de decepções com os vícios arraigados na estrutura institucional dessa igreja visível, esse ainda é um espaço inicial de referência para entender meu pai e minha família.
Deve ser mencionado aqui também o tempo que ele teve junto com minha mãe e minha irmã (eu já estava fora de Belo Horizonte) na Comunidade Evangélica do Castelo. Nas suas próprias palavras, “um tempo dado por Deus para transição e restauração”.
 
Mas meu pai me ensinou a ver além dos muros denominacionais. Desde pequeno, sempre conversávamos em família sobre os encontros e os desencontros do mundo evangélico e sobre aquilo que precisava ser essencial. Meu pai teve papel destacado nos primeiros debates sobre fé cristã e política (INESP, etc) e também em movimentos que buscavam unir as denominações evangélicas (AEVB, etc). Era um visionário. Às vezes, depois de uma grande articulação, queixava-se comigo que as pessoas não conseguiram perceber tudo aquilo que ele queria passar. Mas quem disse que isso o desanimava? Algum tempo depois, lá estava ele fazendo outra “articulação”.
 
Para ele, sua profissão tinha de ter um componente direto de transformação social. Era parte intrínseca de sua vocação cristã. Nesse sentido, economista por formação, com especialização em administração, abriu mão de uma carreira em grandes empresas (o que poderia trazer maior estabilidade pessoal) para mergulhar em projetos que procurassem trazer justiça social para o bairro, a cidade, a região, o Brasil, o mundo. Nesse ponto, teve em minha mãe Alva uma companheira maior ainda, pois ela, assistente social, debatia e partilhava os mesmos sonhos, em sua carreira de quase vinte anos na Visão Mundial e depois.
 
Esse “jeito de ser” dos meus pais me influenciou profundamente. Sempre me lembro da graça que eles acharam quando descobriram que eu estava brincando com um amiguinho de escola sobre uma imaginária “Associação Comunitária de Agentes Secretos – ACAS”. As conversas de meus pais transbordavam para as minhas brincadeiras.
 
Aqui preciso falar de uma experiência seminal em sua vida profissional (ele sempre voltava a ela; lembrava com carinho e nostalgia): a gerência de um projeto do Fundo Cristão para Crianças no Bairro Cabana de Belo Horizonte. Ali ele fez algo que influenciou toda a sua vida posterior; ali ele formou uma equipe (era exímio nesse trabalho) que até hoje o vê como uma referência de líder.
 
Em abril de 2005, meu pai saiu de Belo Horizonte para Curitiba para o que se tornou o último grande desafio de sua vida: implantar a Missão Aliança da Noruega no Brasil, uma organização diaconal evangélica que apóia igrejas locais que desenvolvam algum trabalho de transformação social na realidade em que estão inseridas.
 
Entrando nos sessenta anos, incansável, consolidou e iniciou vários projetos e, junto com a Fundação Kairós e outras organizações (bem ao estilo dele, articulando várias cabeças pensantes e conciliando idéias), procurou fazer com que as igrejas evangélicas voltassem a pensar e a praticar a missão integral, o que culminou com o livro “Igreja: agente de transformação”, organizado por ele em conjunto com René Padilla, lançado recentemente.
 
Não posso esquecer de mencionar sua vinculação histórica à Aliança Bíblica Universitária do Brasil – ABUB: participante do Congresso de 1976, articulador de grupos estudantis e profissionais, Diretor Financeiro, participou com maior ou menor intensidade sempre, com e sem cargos (todo legítimo ABUense sabe que não é necessário cargo para trabalhar no movimento, basta comparecer à reunião). Dizia-me que aprendeu a viver a fé no dia-a-dia na ABUB (e eu segui seus passos: aprendi também a viver a minha fé no dia-a-dia na ABUB). Orgulhava-se em dizer que eu freqüentava a ABU desde que aprendi a andar e que era apelidado de “rodinha” pelos grupos de estudantes e profissionais.
 
Nos últimos anos, ficamos distantes fisicamente (fui morar fora de BH e, quando voltei, ele foi para Curitiba), mas ele ficava horas comigo no telefone contando o que tinha acontecido com ele, o que tinha feito, suas impressões, seus planos e seus sonhos, como se estivéssemos sentados à mesa da sala de jantar de nossa antiga casa em BH, após uma refeição.
 
Querido papai. Vamos sentir muitas saudades, principalmente porque a partida foi muito rápida e sem aviso. Mas não é um “adeus”. É um “até logo”. Nossa vida neste mundo é passageira. Somos peregrinos em terra estranha. Daqui a pouco nos encontramos na Glória com Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Lá não haverá mais choro. Lá seremos verdadeiramente felizes.

Que Deus tenha misericórdia de nós e nos capacite a viver de modo digno para com a vocação para a qual fomos chamados. Somente a Ele toda a Glória!


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