domingo, 18 de julho de 2010

Jesus e os fariseus: uma análise de um sistema ético

Eduardo Ribeiro Mundim

Jesus e os fariseus têm um longo histórico de contendas. Certos trechos das Escrituras parecem transmitir, ao menos superficialmente, uma relação de quase-inimigos. É certo que disputas com eles serviram de pano de fundo, ou quadro, para diversos ensinos de Jesus. Igualmente correto é que entre os seus seguidores havia fariseus. Inquestionavelmente fariseus e escribas arquitetaram o falso julgamento, e a condenação, dEle à morte.

Como grupo dentro do judaísmo daquela época, sua origem pode remontar ao tempo de Esdras, e da construção do segundo templo. Eles parecem ter surgido como consequência do estupor provocado pelo exílio: como era possível para a raça dos filhos de Abraão, Isaac e Jacó amargarem o exílio? como era possível que das doze tribos, dez tenham desaparecido enquanto tais? A resposta, biblicamente enraizada, encontrada por eles, foi "não termos cumprido a lei" (Dt 28).

Impactos pela dura lição da realidade, diligentemente procuram um recurso para nunca mais caírem no mesmo erro. Cheios de desejo de fazerem a vontade de Deus, escrutinam a Lei e dela extraem regras para que jamais um judeu piedoso não tivesse referência sobre qual era a vontade expressa de Deus para uma determinada situação. Eles criam um sistema ético.

O evangelista Mateus, no capítulo 23, registra um dos embates mais duros entre Jesus e os fariseus. Duro por causa das palavras, explícitas: hipócritas não é um termo facilmente entendido como gentil ou caridoso. E Jesus o usa 7 a 8 vezes. Contudo, é importante atentar para os versos finais do capitulo (37-39): "Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas... e tu não quiseste!" Parece a mim que neste momento Ele chora, porque as palavras ditas são de amor e carinho, de fragilidade e de cuidado para com o indefeso... Longe de chicotear os fariseus com sua força moral e a dureza das palavras, na melhor da tradição bíblica (Pv 3.12), Jesus procura corri-los, e a nós.

E não pode ser esquecido que o debate público, como este registrado pelo Evangelho, era recurso didático naquela época para ensinar e dirimir as dúvidas que existiam.

Jesus não inicia sua argumentação lançando ao lixo o sistema ético cunhado pelos fariseus. Ao contrário, de alguma forma Ele o chancela: "Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem". O defeito não parece estar no sistema, mas na incongruência de quem o prega e mantem: "Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam." A atitude predominante era, ao final, de opressão e de ausência de solidariedade: "Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los."

A opressão e a ausência de solidariedade se materializam no escândalo condenado no verso 14: "Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações." Na contramão do que ensina do sermão do monte (Mt 6.7) os fariseus se comportam como se fosse pelo muito falar que seriam ouvidos, e não pela insistência da oração diligente (Lc 18.1-8). Também se esqueciam dos berros dos profetas: "Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes...Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras." (Am 5.21-23) e "não posso suportar a iniquidade e o ajuntamento solene!" (Is 1.13). Ao procurarem fazer a vontade de Deus, criaram hipocrisia, opressão e solidão.

E quais são as consequências deste sistema ético, puro nas suas intenções, incoerentemente posto na prática? No verso 13 Jesus lhes diz: "Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo." O testemunho do Reino tem efeito inverso ao desejado, e perverso, segundo o verso 15: "percorrem terra e mar para fazer um convertido e, quando conseguem, vocês o tornam duas vezes mais filho do inferno do que vocês." Este sistema ético mina e destrói o reflexo do Reino do qual deveria ser o mais perfeito espelho.

E Jesus aponta três prováveis causas para este projeto divino que fracassa em direção ao inferno.

Os fariseus de então perderam seus valores básicos: não é mais o sagrado que santifica, aquilo que vem do alto, superior a eles mesmos, mas apenas suas ações. O templo nada significa em si mesmo - ele é santificado pela oferta que nele é depositada! (Mt 23.16-22)

Perderam os valores básicos: o dízimo do mais insignificante detalhe é superior à justiça, à misericórdia e à fidelidade (Mt 23.23-24) Sim, o dízimo é para ser praticado, mas o resumo de toda a Lei é "'ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento" e "ame o seu próximo como a si mesmo" (Mt 22.36-40). Sobre estes dois pilares se desdobra a próxima etapa da relação humana vertical, entre seres humanos: justiça, misericórdia e fidelidade àquele que a tudo origina. Um sistema ético cristão não pode perder seu contato com sua origem, não pode perder a visão de sua base, não pode lançar fora os pilares da justiça e da misericórdia.

A segunda causa apontada por Jesus é perda da autocrítica (versos 29-32): "Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados, não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas". Sim, não teriam tomado parte, assim como nãotomarão parte na crucificação próxima de Jesus, que Ele mesmo lhes anuncia: "Acabem, pois, de encher a medida do pecado dos seus antepassados!".

E a terceira causa é mostrada logo nos primeiros versos (5-12): perderam a motivação real do sistema. O sistema ético farisaico existe apenas para lhes dar visibilidade e respeito, como um texto bem urdido, bonito de se ver, agradável aos ouvidos, mas para ser mantido longe da prática do dia a dia.

O resultado final da incongruência, do velamento do Reino de Deus, da perda dos valores básicos, da capacidade de autocrítica humilde e da motivação verdadeira, é o julgamento público dentro da ideia de que "as próprias pedras clamam". Alguns comentaristas apontam que a visão dos fariseus como sepulcros caiados (versos 25-28) era comum aquela época. Ou Jesus foi o iniciador da ironia, ou dela se apropriou, e, com o peso de Sua autoridade ímpar, lançou-lhes no rosto, em lágrimas, a zona de total descrédito que eles mesmos se colocaram.

Dentro do melhor estilo protestante, usar as Escrituras contra nós mesmos, pontuo quatro aplicações:
a) somos solidários com a grávida em dificuldades, sejam elas de que natureza forem, de modo que a alternativa ao aborto realmente exista, de modo executável, sem fantasias e "pé no chão?" O dono do espermatozoide é chamado, e amparado, ao exercício das suas responsabilidades?
b) somos solidários com aqueles que estão morrendo, amparando-os de modo profissional, a fim de que não exista a necessidade de se cogitar na eutanásia como recurso de reduzir o sofrimento?
c) somos impregnados pelo Evangelho a ponto de nos adaptarmos de forma saudável às limitações que podem (e elas acontecem) cair sobre nós, e que não podem ser revertidas (a chamada resiliência)?
d) como somos conhecidos por nossa ação no nosso meio profissional e social? e enquanto políticos? somos coerentes como sistema ético que livremente abraçamos em resposta ao amor de Deus?

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